Jogos com bola existiram desde a mais remota antiguidade. Há testemunhos desses jogos tanto na Grécia Antiga como no Império Romano. Os romanos jogavam com enormes bolas a que davam o nome de follis consistindo o jogo em empurrar essas bolas com os pés. Esses jogos atravessaram a Idade Média e chegaram até aos nossos dias na forma de jogos tradicionais praticados um pouco por todo o mundo com nomes diversos: soule em França ao tempo da Guerra dos Cem Anos, e melle ou barette noutras regiões. Aliás, com este último nome aparece referido um jogo de bola em 1888, em França, na Liga Nacional de Educação Física. As condições e as regras segundo as quais se praticavam variaram ao longo dos tempos e divergiam de cultura para cultura.
Porém, os desportos com bola, tal como hoje os conhecemos, são de formação relativamente recente. As suas origens não vão além de meados do século XIX.
Foi com a Revolução Industrial que se generalizou a prática desportiva. A Inglaterra, origem da Revolução Industrial, foi também o berço dos desportos que se iriam tornar, no século seguinte, grandes manifestações, quer como prática desportiva, quer como espectáculo, adquirindo rapidamente o interesse apaixonado das multidões.
Entre esses desportos, aquele que foi baptizado como foot-ball association nasceu no ano de 1863 quando lhe foram traçados os regulamentos que tomaram como base as regras de jogo seguidas em Cambridge e noutras universidades. Os jogos com bola praticados nas escolas inglesas receberam o nome genérico de fooball mas eram praticados com grandes variações de escola para escola. A certa altura começaram a praticar-se algumas modalidades de football uma ligada à escola de Rugby - rugby game - , outra à de Harrow - harrow game - e outra ligada à escola rival de Eton que começou a ser designada por football association ou, simplesmente, association. É que, enquanto em Rugby e em Harrow se jogava em campos atapetados de relvados abundantes que permitiam empurrar, mergulhar e cair sem pôr em risco a integridade fisica dos jogadores, em Eton só podiam jogar em campos áridos de terra batida ou em pátios de chão rijo em que as quedas provocavam ferimentos, fracturas e lesões. A bola oval do rugby própria para agarrar e conduzir com a mão, diferiu da bola redonda própria para pontapear. Em Julho de 1871 disputou-se a competição que seria historicamente considerada o primeiro campeonato de futebol disputado no mundo: a Taça Challenge.
A divulgação do futebol foi rápida não apenas na Inglaterra e no seu Império. Nessa altura, Londres era a capital da economia-mundo influenciando e controlando praticamente todos os mares e todos os continentes. Assim, tal como o tennis, o cricket, o rugby, o hóquey e o ciclismo, o futebol ganhou rapidamente a afeição não apenas da juventude que o praticava, mas de homens e mulheres de todas as condições e idades.
Ao contrário de outros desportos que exigiam condições e equipamentos apenas acessíveis às elites mais favorecidas em meios de fortuna, o futebol podia-se praticar desde que houvesse dois grupos de jogadores, um terreno mais ou menos plano, um objecto com forma esférica e bastante leve para ser chutado e dois postes a servir de baliza. Talvez por isso, teve divulgação rápida e massiva, afirmando-se em poucas décadas como o desporto preferido de vastas regiões do mundo.
O futebol teve como veículos de difusão os marinheiros ingleses que, ora em busca de matérias primas, ora no transporte dos produtos das suas indústrias altamente desenvolvidas, chegavam a todas as regiões. Era fácil levar em cada barco bolas que permitissem desentorpecer as pernas nos portos de escala onde paravam. Também os diplomatas ao serviço de sua majestade e os funcionários colocados pelas empresas nos países onde tinham interesses, levavam consigo os apetrechos e o saber para a prática do novo desporto. As universidades inglesas, as primeiras a ministrarem os saberes científicos e técnicos actualizados da nova civilização industrial, atraíam os filhos das elites que governavam os países que com a Inglaterra mantinham negócios e trocas culturais. Esses estudantes, ao terminarem os seus estudos, ou quando voltavam em gozo de férias, traziam na sua bagagem bolas e nos seus hábitos o gosto pela prática do futebol.
Sabemos que assim aconteceu em Portugal. Em Lisboa, é um estudante em Inglaterra que traz consigo a primeira bola de futebol. Na Madeira, como no Algarve, são marinheiros que mostram aos locais o novo jogo da bola. No Porto, são os ingleses aí estabelecidos em volta dos negócios do vinho. Em Portalegre, segunda cidade a ter constituído uma federação de futebol, terão sido os ingleses ligados ao negócio da cortiça a introduzir o novo desporto nos hábitos da cidade.
Segundo um artigo de A Voz de Portalegre, George Robinson em 1847 adquiriu uma pequena fábrica de cortiça que tinha sido fundada dez anos antes por outro inglês, Tomaz Reynolds. Seu filho George Wheelhouse Robinson, nasceu em Portalegre em 1857 e aí morreu em 1932. Foi educado na Inglaterra nas escolas de Doncaster e Leedon. Mas passava as férias em Portalegre e aí regressou terminados os estudos. É difícil não estabelecer a relação entre a sua presença na cidade e a práctica do futebol que começou em tempos tão remotos.
Com poucas diferenças, estes factos verificam-se nas últimas décadas do século XIX.
Contudo, em Portugal, por esse tempo, as coisas não corriam de feição para os ingleses. Os nossos mais antigos aliados tinham, através de sucessivas atitudes de arrogante e assumida sobranceria, afrontado os sentimentos nacionais do povo português. Primeiro, fora o aproveitamento da ausência do rei no Brasil e a nossa necessidade que nos viessem socorrer contra as Invasões Francesas. Vieram e ficaram. Ficaram e dominaram como se de uma colónia sua se tratasse. Foram compelidos a retirarem-se pela Revolução Liberal de 1820.
Com o tempo, o povo português foi esquecendo esse antigo ressentimento. A necessidade e o interesse voltaram a aproximar-nos dos ingleses. Mas, já para o fim do século, novas mágoas vão ditar novos ressentimentos. A Inglaterra, com as outras grandes potências europeias, lançou olhares de cobiça e de venalidade para uma África prenhe de recursos naturais, matérias-primas para as suas indústrias. Reunidos na Conferência de Berlim, negaram os direitos históricos de Portugal sobre o continente africano. Pretenderam dividir entre si a África, ditando um novo direito: o da capacidade de ocupação efectiva.
Portugal, atrasado e pobre, procurou salvar o que fosse possível. Mandou à pressa exploradores como Serpa Pinto, Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens fazer o reconhecimento das terras do interior. Foram traçados os primeiros mapas. Portugal procurou definir os seus direitos, assinalando num mapa, a cor-de-rosa, os territórios que reivindicava como de sua pertença. Nesse mapa, o que hoje é Angola ficaria ligado, em continuidade territorial, ao que hoje é Moçambique. Ora, tal pretensão ofendeu as ambições inglesas que queriam assegurar a ligação das suas colónias do norte com as do sul do continente africano.
A reacção foi brutal porque, além de rasgar a mais antiga aliança entre dois países europeus, ameaçou com o imediato recurso à força das armas contra Portugal se este não se submetesse às exigências da Inglaterra.
Que poderia fazer o rei e o governo de um país tão atrasado, tão pobre e tão dependente como Portugal?
Os governantes cederam à lei do mais forte. Mas o povo português não podia aceitar nem perdoar. Um ódio nacional forte e intenso polarizou-se em tudo o que fosse inglês ou que de Inglaterra viesse. Ora, tudo isto acontece na altura em que o futebol acabava de chegar ao nosso território e nele começava a dar os primeiros pontapés. Até tinham começado a organizar-se os primeiros clubes e a disputar-se os primeiros matches.
O entusiasmo inicial esfriou. O futebol chegou a ser depreciativamente tratado por jogo do coice. Apesar disso, ainda que de forma reservada, quase às escondidas, continuou a ser praticado, principalmente pelos ingleses que aqui continuavam a residir.
Quando melhores dias trouxeram ao povo razões para esquecer antigas mágoas, o futebol pôde voltar a emergir. E, com que força. Em menos de duas décadas expande-se por todo o país. As duas primeiras décadas do século XX foram os anos de proliferação da prática do futebol no nosso país. Surgiram os primeiros clubes. Alguns nunca iriam passar de pequenos clubes de bairro. Outros, tornaram-se os grandes clubes de hoje.
A maior parte dos clubes de futebol que ainda hoje existem em Portugal, foram criados antes dos anos 30 do século XX. Eram em número tão elevado que não havia cidade ou vila que não tivesse mais do que um clube mais ou menos organizado. Mesmo em certas aldeias, os clubes se constituíram. Seria talvez mais apropriado designá-los por grupos do que por clubes, atendendo à fragilidade orgânica e ao carácter efémero da maior parte deles. Tratava-se de grupos de rapazes – estudantes, amigos, colegas de trabalho ou de empresas, sócios de sociedades recreativas – que se juntavam para constituir equipas para a prática do futebol. Muitos desapareceram sem deixar rasto. Os que conseguiram sobreviver, cresceram, integraram-se em campeonatos. Primeiramente, disputados a nível local entre os clubes da mesma povoação ou entre clubes de povoações mais próximas. Nos primeiros tempos, primeira década do século XX e parte dos anos 20, não havia campeonatos organizados a nível nacional. Os jogos eram combinados entre as equipas. Designavam-se como desafios porque o que de facto acontecia era que uma equipa desafiava outra para disputar um jogo de futebol.
Os campos, mesmo em Lisboa, nem sempre possuíam as medidas regulamentares e não tinham como utilização específica a prática do futebol. Eram terrenos mais ou menos planos, campos de feira, praças públicas, onde se podiam espetar dois paus no chão, a sete pés de distância entre si e ligados em cima por uma corda, que faziam de baliza. As redes só apareceram mais tarde, como as marcações do campo, como os árbitros e como as regras que só foram fixadas e assimiladas com o decorrer do tempo. Os primeiros campos de futebol eram apenas isso: campos onde se podiam dar uns chutos na bola.
A própria bola nem sempre era fácil de adquirir porque era cara, rara e difícil de fabricar. A bola deixada pelos marinheiros ingleses na Madeira em finais do século XIX, quando se lhe estragou o cautechu, introduziam-lhe dentro uma bexiga de porco para que pudesse continuar a ser utilizada. Daí que a necessidade levasse ao engenho de se fabricarem bolas de trapo com meias velhas, cheias de tudo o que pudesse servir de lastro para encher um objecto que, se não servia para jogos a sério, servia pelo menos para praticar.
Até à década de vinte, só Lisboa, a partir de 1910, Portalegre, a partir de 1911, o Porto, a partir de 1912 e a Madeira, a partir de 1916, tinham constituído associações de futebol que permitiam organizar campeonatos locais.
Só na época de 1921/22 se organizou o 1º Campeonato de Portugal que consistiu num desafio entre o campeão de Lisboa e o campeão do Norte. Este Campeonato de Portugal disputou-se entre as épocas de 1921/22 e 1937/38. Começando por se disputar entre o campeão de Lisboa e o campeão do Norte, veio depois a revestir um figurino semelhante ao da Taça de Portugal, pois consistia em sucessivas eliminatórias em duas mãos com recurso a finalíssimas em caso de empate. Aliás, deixou de se disputar na época de 1937/38 para que, na época seguinte, se começasse a disputar a Taça de Portugal.
Os primeiros autênticos campeonatos a nível nacional, começaram em 1934/35, com a organização das I e II Ligas Nacionais que viriam a dar origem à 1ª e 2ª Divisões. O Campeonato da 3ª Divisão só se começou a disputar na época de 1947/48. Ou seja, praticamente só na segunda metade do século XX é que podemos considerar completamente organizados todos os campeonatos nacionais no nosso país.
Antes disso, por razões diversas, não existiram condições propícias ao desenvolvimento geral do país e o incremento da prática desportiva só podia fazer-se em moldes modestos e a nível local.
Logo a seguir à Revolução do 5 de Outubro, tinham existido condições para o desenvolvimento de clubes de futebol porque os ideais republicanos incluíam as preocupações com as questões educativas e com a prática dos desportos. Mas, a instabilidade constante provocada pelas disputas partidárias a nível interno, e a participação na Guerra de 1914-18, com a mobilização das gerações que estavam em idade de se dedicarem á prática desportiva, impediram, o desenvolvimento da prática do futebol. Apesar de tudo, alguns clubes foram fundados, embora não tenham conseguido grande notoriedade até aos anos 20.
No jornal A Voz de Portalegre de Setembro de 1932, vem um artigo interessante de alguém que, tendo sido testemunha directa dos factos, retrata com vivacidade e colorido a realidade desde pequenos clubes pioneiros na prática do futebol, quando este estava ainda muito próximo das suas origens. Referindo-se aos tempos iniciais do Sport Club Estrela, fundado em 1919, diz o cronista: Nasceu de uma pleiade de rapazes de 10 a 15 anos que jogavam com pélas de trapos, de pé de meia, de borracha e, mais tarde, de couro, servindo-lhes de catchú uma bexiga de vaca. A equipa era interessante: cada um jogava com o que trazia vestido. Uns de blusa, outros de casaco, outros de mangas de camisa; uns de calças, outros de calções; uns de botas, outros de sapatos e outros de alpercatas...
Porque não tinham sede escolheram o nome adequado à sede que então tinham “debaixo das estrelas”: Sport Club Estrela
Podemos facilmente aceitar que a realidade assim descrita estará muito próxima de muitos pequenos clubes que, nessa época ensaiavam os primeiros jogos de futebol.
Os anos 20 constituíram a década em que se deu o primeiro grande impulso para o desenvolvimento do futebol a nível nacional. Por todas as regiões surgiram novos clubes. Organizam-se os primeiros campeonatos, as equipas portuguesas têm os primeiros contactos com equipas além fronteiras. Ensaiam-se as primeiras tentativas de constituir selecções nacionais para representação do futebol português. Constitui-se a Federação Portuguesa de Futebol em 1926. Mas é ainda uma época de total amadorismo.
Em Lisboa, os clubes proliferaram. O futebol tornou-se o espectáculo favorito das classes populares e começou a ocupar páginas inteiras nos principais jornais e revistas: Diário de Notícias, O Século, A Ilustração, O Sport, Notícias Ilustrado, Eco dos Sports, Diário Ilustrado.
Nas terras pequenas era ainda o tempo das balizas às costas, dos campos mais ou menos improvisados, marcados a cal e regador pouco minutos antes dos jogos começarem, dos jogadores se equiparem a céu aberto dentro de uma roda de amigos a servirem de cortina para resguardar as intimidade dos olhares pudicos e guardar as roupas de cobiças alheias, enquanto se desenrolavam os encontros.
As regras utilizadas na maior parte dos desafios estavam ainda muito pouco definidas. Os jogos, na sua maioria, não começavam à hora marcada: era preciso esperar que os jogadores chegassem, se equipassem, se escolhesse o árbitro para dirigir o desafio. A duração deste variava consoante a disposição do árbitro e dos próprios jogadores. Estes por vezes interrompiam o jogo, ou porque se magoavam, ou porque contestavam as decisões tomadas pelo juiz da partida. Havia mesmo jogos que não atingiam o tempo regulamentar dos 90 minutos, porque os jogadores zangados se recusavam a continuar. Frequentemente se levantavam conflitos e suspeições devido ao facto de o tempo de duração das duas partes de 45 minutos separadas por um intervalo de 5 minutos, não ser respeitado pelos árbitros. Os próprios árbitros tinham por vezes comportamentos anárquicos, regendo-se mais pelos seus impulsos e caprichos do que pelas regras do jogo.
A Voz Portalegrense, em 1931, referia que um árbitro tinha abandonado o campo ao 39 minutos por causa de um grito de fora o árbitro lançado por um espectador para dentro do campo, sendo substituído por outro para que se pudesse acabar o desafio. Noutro caso, um desafio esteve interrompido muitos minutos porque os jogadores de uma equipa, não concordando com a marcação de um penalty chutavam a bola para longe sempre que o árbitro a colocava na marca de grande penalidade e, por isso, a segunda parte do jogo durou 53 minutos.
Os jogadores jogavam quando lhes apetecia, sendo por vezes difícil, ou mesmo impossível, constituir equipa para jogar.
Num jogo em Elvas, em 7 de Dezembro de 1930, entre os seniores do Sporting Club Elvense e os do Sport Lisboa e Elvas que eram na época os dois maiores clubes da cidade, apesar de o Sport Lisboa ter avisado por carta que não podia comparecer, a outra equipa entrou em campo, alinhou, o árbitro deu início à partida, marcaram dois golos na baliza deserta para confirmarem que ganhavam o jogo e o árbitro deu por findo o desafio.
A Voz Portalegrense de 12 de Fevereiro de 1933, a propósito de um jogo entre o Sport Club Estrela de Portalegre e o Lusitano Ginásio Club de Évora escrevia que quanto às condições de substituição ficou combinado o seguinte: substituir apenas os jogadores que se magoassem, não voltando depois ao terreno.
Ora, o Lusitano não cumpriu o combinado e substituiu durante o encontro alguns jogadores sem estarem magoados, por estarem a jogar mal e alguns dos jogadores substituídos voltavam depois ao campo, saindo os que os tinham substituído, ou os que melhor lhes conviesse.
Este testemunho revela com toda a clareza e sem equívocos quanto eram ainda imprecisas as regras do futebol que se praticava na maior parte das terras de Portugal.
Várias condições e factos ajudam a explicar a relativa lentidão da implantação do futebol a nível nacional. O país, até à década de 60, careceu de meios de transporte que permitissem a fácil deslocação das equipas. Os custos e o desconforto dessas deslocações desmobilizavam as vontades e impediam o alargamento das competições a vastas zonas do território nacional. Viajar pelo país era então uma aventura de respeito que exigia recursos, tempo e capacidade de resistência. Qualquer viagem de média distância demorava horas e, quase sempre, teria de ser feita em condições de muito pouco conforto. Os veículos eram ainda rudimentares e as estradas eram de má qualidade.
No Distrito de Portalegre, nos anos trinta, as vias de comunicação e os transportes tornavam muito difíceis os contactos e as deslocações.
Segundo A Voz Portalegrense, em 1932 o caminho de ferro ainda não tinha chegado a Portalegre e ainda se punha em dúvida se a linha não iria parar no Crato.
No que respeita às estradas as suas condições eram tão limitadas que nos meses de inverno se tornavam intransitáveis. Campo Maior não tinha acesso directo à capital de distrito; as estradas até Arronches, Degolados e Santa Eulália, só podiam ser praticadas em poucos meses do ano.
Em 1933, um combóio que saía de Lisboa às 14 horas e 45 minutos, chegava a Elvas quase oito horas depois, às 22 horas.
Os clubes eram muitos. Mas, a maioria deles, eram de muito pequena dimensão. As equipas circunscreviam-se aos onze jogadores que se equipavam para jogar. Muitas vezes, os mesmos acumulavam as funções de direcção e de gestão das coisas do clube. Os próprios jogadores compravam e cuidavam dos seus equipamentos.
A maioria desses clubes desapareceu quase sem deixar rasto. Os que sobreviveram tiveram sortes diversas. Enquanto uns chegaram aos escalões superiores ganhando projecção nacional, outros continuaram a militar nos escalões inferiores de expressão meramente local.
Fazendo uma pesquisa sobre os clubes que actualmente integram as três divisões maiores dos nossos campeonatos (I e II Ligas e II Divisão B) verifica-se que, a maior parte deles, foram fundados antes de 1930, com particular incidência nos anos 20, período em que se constituíram também a maior parte de associações distritais de futebol. Só então estiveram criadas as condições para a organização dos campeonatos.
Os últimos anos da monarquia e as quase duas décadas que durou a República, foram bastante férteis no que respeita à prática desportiva, particularmente a do futebol.
Foi sobretudo nos anos 20 que se assistiu a um verdadeiro renascimento do futebol em Portugal. Nos grandes centros urbanos, as associações locais de futebol começaram a organizar campeonatos, taças e outros torneios. Os jogos de futebol começavam a atrair multidões, embora muitos campos, mesmo em Lisboa, fossem ainda improvisados em terrenos baldios, em locais de feiras e mercados, em paradas de aquartelamentos militares, em espaços industriais e em praças públicas. Mas começaram a aparecer os primeiros espaços desportivos concebidos e equipados para a prática do futebol, garantindo condições minimamente aceitáveis tanto para os praticantes, como para os espectadores.
Fizeram-se os primeiros ensaios de selecções nacionais para jogos com equipas estrangeiras, embora esses teams encarregados de representarem o país, fossem quase exclusivamente constituídos por jogadores dos clubes de Lisboa. Num jogo disputado em 18 de Dezembro de 1921, a equipa portuguesa integrava jogadores do Sporting Club de Portugal, do Sport Lisboa e Benfica, do Casa Pia Atlético Club, do Club Internacional de Futebol, todos clubes da capital, e apenas um jogador do Futebol Club do Porto que, significativamente, antes tinha jogado num clube de Lisboa. Neste tempo, ainda que de forma camuflada, surgiram as primeiras tentativas de aliciamento dos melhores jogadores pelos melhores clubes que lhes ofereciam compensações económicas, constituindo-se assim os primeiros ensaios de profissionalização dos jogadores.
Em 1922 disputou-se o primeiro Campeonato de Portugal, entre o Sporting Clube de Portugal e o Futebol Clube do Porto tendo sido disputado em duas mãos com um terceiro jogo para desempatar.
Em 1923, Portugal que era membro provisório da FIFA desde 1914, oficializou a sua integração neste organismo internacional.
A partir de 1923, com a generalização das Associações de Futebol, o Campeonato de Portugal pôde alargar-se a outros clubes como o Olhanense, campeão em 1924, o Marítimo, campeão em 1926, o Belenenses em 1927 e 1929 e o Carcavelinhos em 1928. O Sporting foi campeão em 1923 e o Porto em 1925.
No mesmo dia em que terminou a 1ª República derrubada pelo golpe militar do 28 de Maio de 1926, a União Portuguesa de Futebol deu lugar à Federação Portuguesa de Futebol , organismo que passava a superintender em todas as questões deste desporto, incluindo a organização dos campeonatos tanto a nível nacional como internacional.
Na década de 20 surgem também os primeiros grandes ídolos da bola como Francisco Stromp e Jorge Vieira no Sporting, Cândido de Oliveira no Casa Pia e Pepe no Belenenses. Aliás, este fenómeno foi em grande parte impulsionado pelo aparecimento dos chamados rebuçados da bola, os pequenos caramelos vendidos a preços acessíveis, embrulhados em pequenos rectângulos de papel com fotogramas dos jogadores: os famosos bonecos da bola. Estes bonecos, coleccionáveis em bonitas cadernetas, surgiram com os clubes de Lisboa em meados dos anos 20 e depressa se divulgaram por todo o país, as equipas que disputavam a 1ª Divisão Nacional. Os bonecos vão ter uma aceitação tão grande que, desde meados dos anos 20 até aos anos 50, vão constituir a maneira mais eficaz de levar a todos os recantos o conhecimento físico das equipas e dos jogadores, num tempo em que a rádio se começava a divulgar transmitindo os relatos em directo dos encontros, mas em que ainda nem sequer se falava da televisão. Num tempo de grandes dificuldades económicas, num tempo profundamente marcado pela guerra, os bonecos eram cuidadosamente empilhados, guardados como pequenos e preciosos tesouros nos bolsos dos calções. Estabelecia-se uma verdadeira bolsa de trocas porque havia bonecos mais difíceis de obter e que, por isso, chegavam a valer por dez ou mais dos outros. Eram também utilizados como valores que se arriscavam em jogos de azar ou sorte como o berlinde, o pião, as cartas, o rapa-tira-põe. Este mercado permitia aos menos favorecidos obterem as figurinhas que os mais abonados possuíam com maior abundância. Todos os meios eram lícitos para se atingir o objectivo fundamental: completar a caderneta. Na verdade apenas um podia chegar a completá-la porque o famoso número da bola só vinha num dos rebuçados e eram os mais dotados de dinheiro que podiam arrematar o fundo da lata. Conseguia-se assim obter o mais desejado dos prémios: uma bola de couro e cautechu, igualzinha às que eram usadas nos jogos à séria. Daí que os famosos bonecos, ao mesmo tempo que divulgavam os Peyroteos, os Espirito Santos, os Matateus, os Travassos e os Arsénios, cumpriam uma outra função de divulgação do futebol: espalhar pelo país as bolas que permitiam praticar o jogo em situação aproximada à preconizada pelas regras, o que era muito importante numa época em que predominava a redondinha de trapos.
Os jornais começavam a ter uma certa influência sobre as classes médias letradas, levando a todo o país as novidades que antes só chegavam às principais cidades da faixa litoral. Mas, por outro lado, o isolamento a que as terras do interior estavam condenadas, devido às dificuldades de comunicações e de deslocação das pessoas, levou-as a terem de desenvolver localmente a sua própria cultura criando estruturas e meios de convivência, como as associações recreativas, os jornais locais e os clubes desportivos. Esse isolamento levou também à intensificação dos contactos com as povoações que ficavam mais próximas e com maior acessibilidade. Esses movimentos locais foram-se atenuando ao longo dos anos 30 porque o regime político saído da Revolução de Maio de 1926 não via com bons olhos estas manifestações de massas, olhando com desconfiança todas as manifestações de regionalismo e de cultura popular que, como o futebol, provocavam grandes ajuntamentos e despertavam grandes paixões. Só muito mais tarde o regime se aperceberia de que podia usar o futebol com objectivos favoráveis aos seus desígnios políticos.
Nos finais dos anos 20, princípios dos anos 30, outras razões colocavam o futebol sob suspeita. Eram tempos de crise económica. Começara nos Estados Unidos com o Crash da Bolsa de Nova York e alastrara a todas as partes do mundo. A Europa, já debilitada com as consequências da 1ª Grande Guerra, viu a situação agravar-se quando a América devido ao desmoronamento da sua economia, adoptou uma política proteccionista reduzindo ao mínimo as importações. Portugal, com uma economia de quase subsistência, viu agravar-se o seu quadro geral de miséria. O poder político de cariz fortemente conservador e repressivo, tornava impossível qualquer tipo de reivindicação organizada. O trabalho era pouco, mal remunerado e muito esforçado. A prática do futebol tornava-se difícil para os elementos das classes trabalhadoras. Os corpos, mal alimentados, mal suportavam o esforço laboral quanto mais o complemento de carga implicado nas competições desportivas. A tuberculose grassava e, por todo o lado, se constituíam enfermarias de isolamento e sanatórios para cuidar dos infectados com esta doença de cura difícil.
Nas terras pequenas os clubes tendem a unificar-se . Muitos dos que tinham sido constituídos nas décadas anteriores desaparecem. Outros reduzem ao mínimo a sua actividade, como se hibernassem até à chegada de dias mais favoráveis.
Elvas, por exemplo, que já tinha tido meia dúzia de clubes locais, só já tinha dois a concorrerem ao campeonato da sua liga em 1934 e, no ano seguinte, foi preciso constituir um team misto para disputar com o Sporting Club Elvense a representatividade da cidade no campeonato distrital.
Devido a esta tendência geral para a concentração, foi na década de 30 que se constituíram os principais torneios a nível nacional. Com o pós-guerra, nos finais dos anos 40, a situação evoluiu de forma mais favorável para o desenvolvimento da prática desportiva. Por um lado, a situação política tornou-se menos desfavorável. Por outro lado, os transportes passaram a permitir deslocações mais fáceis. As classes médias, na procura de empregos compatíveis com as suas aspirações, saíram para os centros urbanos do litoral. As vilas e aldeias do interior caíram num certo marasmo cultural. Os anos 40 e 50 foram culturalmente muito pobres nos pequenos agregados populacionais. As ondas de choque geradas pela 2ª Grande Guerra contribuíram para o apagamento da vida local, pelas dificuldades económicas que provocaram e porque empurraram as pessoas para a saída dos seus locais de origem à procura de melhores oportunidades de emprego.
Foi nesta nova situação que o futebol encontrou as condições para o seu desenvolvimento que levaram definitivamente ao profissionalismo. Passaria então a desenvolver-se em moldes completamente diferentes. O tempo do amadorismo tinha passado. Os grandes clubes, nas grandes cidades, arrancaram decididamente para se constituirem como grandes empresas destinadas a gerir a prática desportiva. Começou a época dos grandes estádios, do futebol espectáculo e do futebol paixão, capaz de agregar grandes multidões atraídas pela magia que os grandes ídolos traziam ao jogo.
uma obra de Joaquim Folgado e Francisco Galego