Havia uma promessa: se viessem para Portugal, poderiam dar o salto para os grandes palcos do futebol. Contavam com um tecto, salário e comida. Um deles, em dois anos, só recebeu 100 euros. Outros passam fome. Estão ilegais e na mão de quem os trouxe
O corpo de Etoo já não aguentava tanta fome. Tentou combater a dor que sentia no estômago, mas os "quase cinco litros de água" que bebera não tinham sido suficientes. O almoço foi mais do mesmo: arroz e uns pedaços de salsicha que tinham sobrado. Depois entrou em campo com a camisola do Estrela de Portalegre vestida e debaixo de um sol forte. No final do torneio, uma sandes oferecida pelo clube. Sentia-se no limite das forças, mas não podia queixar-se. Estava a mais de 6 mil quilómetros de casa, nas mãos de quem lhe tinha acenado com o céu e a terra em Portugal.
Quando entrava em campo, Etoo era apenas mais um elemento num grupo de jogadores cheios de talento. Uns tinham chegado a Portalegre vindos da Nigéria, como ele. Outros tinham deixado a África do Sul e Cabo Verde para trás. A maioria cruzou o Atlântico, voando directamente do Brasil. Houve também alguns portugueses na equipa, mas em menor número. À excepção óbvia dos últimos, quase todos estão em situação ilegal no país. Foram "escolhidos" por Sérgio Daniel - o rosto de uma empresa quase fantasma com sede na Nigéria e baptizada de Elite Sports Group. Foi-lhes vendida a promessa - ou a ilusão - de que poderiam alcançar os grandes palcos do futebol europeu, mas acabaram a trabalhar meses a fio a troco de nada. Salário, um tecto em condições, roupa lavada - o que era básico tornou-se para eles um luxo que nunca puderam conhecer.
Chegaram com um visto turístico depois de pagarem do próprio bolso as viagens para Portugal, e começaram a jogar assim que entregaram em mão, ao representante da empresa, cerca de 1600 euros. O dinheiro, foi-lhes dito, serviria para pagar as burocracias habituais para a participação no campeonato distrital - despesas que, regra geral, cabem aos clubes que os jogadores representam. "É como se fosse um trabalho escravo, ele vive do teu sonho, a tua vontade de vencer é maior que os obstáculos", resume o brasileiro Davi Kirstenmacher, um ex-jogador afastado do clube alentejano.
Neste preciso momento há uma dúzia de jovens jogadores a viver num quarto transformado em camarata, nas instalações da sede do Estrela de Portalegre. Acabaram de chegar à idade adulta, têm entre 19 e 25 anos. Alguns dormem há dois anos naquele espaço com menos de 65 metros quadrados, atulhado com dez beliches e outras duas camas individuais. É praticamente impossível caminhar de frente entre as camas.
Há paredes completamente manchadas de negro, efeito da humidade. Há caixotes de cartão cheios de lixo entre os beliches, fios eléctricos descarnados, tomadas arrancadas das paredes e um cheiro intenso a urina que preenche o ar, vindo da casa de banho, paredes meias com o quarto. Do lado de lá da porta, a roupa de treino amontoa-se, ainda húmida, em várias pilhas. Entrar na divisão dos duches é um verdadeiro desafio aos sentidos. Na zona do duche - um duche e uma sanita para 12 jogadores de futebol - há um charco da água do banho que continua por limpar. "Há muita desarrumação, o que é natural porque são miúdos novos e são de cultura africana. Temos a empregada de limpeza que vai lá três vezes por semana e que faz o que pode", justifica Sérgio Daniel. "A única questão é a das paredes, que a empregada disse que não quer limpar agora porque vai voltar a ficar na mesmo devido ao tempo", considera o responsável nacional pelo projecto. A culpa, diz, até é do clube, que "não disponibilizou a estrutura que devia ter disponibilizado".
O cenário - a casa daqueles miúdos - é profundamente precário. Mas ali ninguém faz ondas. Há como que uma calma podre no ar. São duas da tarde. Enquanto alguns atletas descansam, outros, no piso de cima, preparam o almoço. Não há novidades no menu. A mesma massa, as tiras de bacon e pouco mais. Carne é privilégio de alguns, os que tiveram sorte de ser "escolhidos" pelo director. Os restantes baixam a cabeça e seguem.
A humidade e o frio que se fizeram sentir este Inverno deixaram marcas em alguns jogadores, que adoeceram. Mas quando os colegas alertaram Sérgio Daniel para essa situação, a resposta veio na negativa. "Pedi para ele comprar remédio para o meu amigo, mas ele não quis e eu é que tive de ir na farmácia comprar, só que nem me venderam antibiótico", conta Davi Kirstenmacher, que chegou a partilhar a camarata com outros elementos do grupo durante 15 dias.
A vida, por vezes, é dada a ironias negras. Sérgio Daniel parece tranquilo com o que carrega nos braços. Durante quase uma hora, num encontro fora do clube (onde raramente é visto pelos jogadores), conta como o projecto começou, reconhece os problemas de logística e, no final da conversa, garante que a ideia tem pernas para andar. O ambiente em que os jogadores vivem é degradante mas, para o director- -geral da empresa, eles são os "diamantes em bruto" da Elite. São o bem mais precioso de um projecto que deveria prosperar com o dinheiro das transferências dos jogadores para outros clubes. Só que, até ao momento, nem um único negócio ficou fechado. A ideia nasceu na Nigéria, há pouco mais de dois anos.
Sérgio Daniel viajou em 2012 para o mais populoso país africano com uma proposta aliciante em carteira: ia treinar uma equipa de futebol da primeira divisão, o Kaduna United F. C. Mas os planos não correram como previsto. "A situação apresentada antes de eu ir não era bem a que eu esperava, e foi então que o grupo, que tinha sido recém-criado, me deu a possibilidade de expandir o projecto desta forma", recorda, em declarações ao i. Sérgio mudou o chip e tornou-se o elemento mais importante do projecto (e o único que os jogadores recrutados conhecem, de resto). Rapidamente começou a abordar jovens promessas do futebol e a trazê-las para o Alentejo. "Eu sou o elemento que escolhe os atletas para serem potenciados e também trabalho os atletas aqui em Portugal. Sou eu que vou a esses países em que temos atletas e digo os que valem a pena ou não", explica.
Apresentado como "director-geral" no site da empresa, não esconde as ligações do grupo ao governo nigeriano. Na mesma página, Tijjani Garba - director da única companhia pública de seguros daquele país - é apresentado como o presidente da Elite Sports Group. A morada portuguesa que consta no site, de Portalegre, é falsa. Simplesmente, não existe. O único número disponível vai ter ao telemóvel de Sérgio Daniel.
Ricardo Caldeira (o "Ricardinho") conhece-o "há uns 20 anos". Jogaram à bola juntos, em Portalegre, quando ainda eram miúdos. Foi a ele que Sérgio estendeu o convite quando surgiu a hipótese de ser treinador na Nigéria. Ricardo chegou a ser aliciado para assumir o cargo de adjunto mas, com duas filhas pequenas, optou por esperar em Portugal e ver o que saía dali. Quando o plano inicial falhou, foi ele quem sugeriu a Sérgio Daniel o Estrela de Portalegre como uma boa base para lançar o plano B. "Tens dois clubes parados em Portalegre e os miúdos precisam de competição. Não precisas de trazer 20 jogadores da Nigéria. Trazes alguns, promoves esses, o pessoal vai ficar interessado, juntas os melhores daqui e depois entras em acordo com algum clube", desafiou o amigo.
Mas isso foi no início, antes de Ricardo, também ele ex-jogador do Estrela, ter percebido o que se passava. "O objectivo dos miúdos é chegar ao Benfica, ao Porto, e eles acreditam nisso. Ele iludiu-os, tal como iludiu o clube." Também Ricardo caiu na malha. "Ele enganou-me muito bem. Nunca na vida pensei que fosse assim, ele comia na minha casa, e eu na casa dele."
O Estrela - um dos dois clubes míticos da cidade - acabou por ser o escolhido para o projecto porque tinha uma estrutura capaz de receber as jovens promessas. O projecto estava em marcha.
Durante dois anos e meio, até Janeiro deste ano, chegaram a Portalegre 23 jogadores estrangeiros: 12 brasileiros, seis nigerianos, quatro sul-africanos e um cabo--verdiano. Mas, em Fevereiro, tudo mudou.
APANHADOS NA REDE Alguns jogadores foram saindo à medida que o quadro ficava mais claro para eles. Partiram 12, ao todo, sem contar com os cinco portugueses que chegaram a integrar o grupo e saíram entretanto.
Davi Kirstenmacher só chegou em Janeiro. Conhecia um jogador da equipa e pediu a Sérgio Daniel uma oportunidade para mostrar o seu valor a outros clubes. Pagou os mesmos 1600 euros para vir, mas rapidamente ficou impressionado com o que encontrou. "A princípio, foi a alimentação." Para o pequeno-almoço, "o cara comprava seis caixas de leite para 15 jogadores. Isso não existe". "Pão, ele compra seis sacos para durar de sexta a sexta", mas entre refeições e treinos, em menos de nada, já as provisões tinham acabado. "O café da manhã dura dois dias, café da tarde não-tem- -nada", refere, acentuando cada palavra. "Não vou dizer que eles passam fome a cru. Mas se passares aqui... ele não come macarrão nem come arroz com feijão e atum todo o dia na casa dele", aponta Davi. Uma vez por semana, um dos jogadores deixa as instalações para voltar umas horas mais tarde com alguns sacos de compras. É sempre assim que funciona a reposição da despensa.
Davi é apenas mais uma voz num coro amplo de críticas (anónimas) à Elite e a Sérgio Daniel. Vários jogadores da equipa reforçam ao i, sob garantia de reserva de identidade, os argumentos do ex-colega brasileiro. Percebem o que se passa, mas têm medo de falar. Medo e esperança, porque a maioria dos que continuam no clube ainda acreditam que este é o preço a pagar para chegarem ao grande palco. "O sonho é maior que a necessidade, eles não estão nem aí se vão passar fome ou frio, um frio tremendo", lamenta Davi.
A equipa começou a competir esta época no campeonato distrital. Iam em segundo lugar, com uma vitória e um empate frente ao líder, o Crato. Mas, no final de Fevereiro, os investigadores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras interromperam abruptamente o treino. Dois jogadores, que já tinham sido notificados da sua situação ilegal no país no Verão passado, acabaram a prestar declarações em tribunal. No processo, que o i consultou, lê-se que Sunday Akoh declarou perante a juíza que "apenas recebeu, desde que chegou [ao Estrela de Portalegre, há mais de dois anos], a quantia de 100 euros". Antes, já tinha passado pelo Paços de Ferreira e pelo Académico de Viseu.
A maioria dos jogadores está na mesma situação. Treinaram todos os dias durante meses, jogaram sempre que foram chamados e conquistaram vitórias para o Estrela - a subida à divisão seguinte já se adivinhava no horizonte. Mas a Elite, responsável pelo pagamento dos salários, quase nunca cumpriu a sua parte. Ricardo Caldeira ouviu da boca de Sérgio Daniel os planos que tinha para a equipa: "Vou dar 225 euros ao Michel, quem vai ganhar mais leva 200, uns vão ganhar 150, outros vão ganhar 100, outros 75 e por aí fora", explicou, no início. Vários jogadores contam que o único pagamento foi feito no final do Verão passado, quando a época ia começar.
Sérgio Daniel apenas admite que houve problemas pontuais. "Tivemos algumas dificuldades financeiras em Novembro e Dezembro, houve falhas no salário, mas em Janeiro começou a ser reposto de novo e espero que seja regular e que o que ficou atrasado seja reposto, é uma coisa que eu exijo." Os pagamentos serão, alegadamente, feitos em dinheiro. Os responsáveis enviam verbas da Nigéria para Portugal, para uma "conta pessoal" do director-geral, e ele encarregar-se-á, por sua vez, de passar a cada jogador o valor que ficou inicialmente acordado.
Mas os atletas continuam sem ver o dinheiro que lhes foi prometido. Trabalham, mas não recebem. Cumprem o que lhes é pedido, mas ainda não tiveram direito a um contrato de trabalho. E acreditam que estão presos à Elite porque assinaram um papel onde está escrito que cedem todos os seus direitos desportivos e de imagem ao grupo. Mas, na verdade, esse documento, com quatro cláusulas, não tem qualquer validade legal, porque não passa de uma folha de tamanho A4 desenhada a computador e com os símbolos da FIFA, da UEFA, da Elite Sports Group, da Associação Nigeriana de Futebol e da Federação Portuguesa de Futebol alinhados no cabeçalho de cada uma das duas páginas.
O Estrela de Portalegre foi sendo deixado para segundo plano. O clube também assinou com a Elite Sports Group um contrato, de cinco anos e outros três de opção, cedendo ao grupo todos os direitos desportivos na gestão da equipa sénior, a troco de cinco mil euros. Mas quando o caso chegou a tribunal, os alarmes dispararam. De um momento para o outro, sem aviso prévio aos jogadores, o clube suspendeu a competição.
A 20 de Fevereiro, o dia da inspecção- -surpresa do SEF no Estrela, Sérgio Daniel garantia ao jornal "Record" que a situação dos jogadores - a competir há meses pelo clube sem nunca terem assinado um contrato de trabalho - ficaria resolvida na semana seguinte. Não ficou. Ao i, o antigo treinador e rosto da Elite Sports Group fala em obstáculos à legalização. "Queríamos oferecer um contrato de trabalho e foi-nos sempre dito pelo SEF que os atletas não estavam legais e não podíamos fazê-lo." Diz que chegou a escrever ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, a expor o caso, mas ficou sem resposta.
Tersoo John (fundador e director-executivo da Elite Group) tem outra explicação para os últimos dois anos. A partir da Nigéria, por telefone, o responsável refere que a intenção inicial era ter jogadores a treinar durante algum tempo em Portugal, mas fazer desse treino uma plataforma para a venda dos atletas. A parceria com o Estrela de Portalegre foi uma sugestão directa de Sérgio Daniel à empresa. Tersoo não consegue explicar porque nunca foram apresentados contratos de trabalho aos jogadores, mas está convicto - porque é a informação que o director-geral lhe faz chegar - de que "os jogadores têm recebido uma verba mensal" pela sua ligação à Elite. Ainda assim, o responsável refere que, "apesar das dificuldades e do que aconteceu, nunca foi por negligência". Deveu-se tudo às "condições económicas e políticas" na Nigéria. "Garanto que dentro de um mês ou dois teremos uma boa capacidade financeira para conduzir o projecto em Portugal como pretendíamos, com um clube da segunda divisão", acrescenta.
John (o nome do jogador africano é fictício) está a perder a esperança. Percebe-se nas suas palavras. Continua a viver nas instalações do clube, mas já não treina, tal como a maior parte da equipa. Alguns atletas foram levados a treinar num clube mais pequeno, o Gafetense. Por agora, John limita-se a esperar pelas remessas de alimentos que Sérgio Daniel faz chegar à sede do Estrela de Portalegre. Está ansioso por encontrar uma saída mas, sem contrato de trabalho, tem os dias contados em Portugal. "Não desejava isto a ninguém", desabafa. Chegou há quase um ano, disseram-lhe que ia ficar num hotel e prometeram-lhe um salário, sem especificar valores. Perguntou se ia chegar a um grande clube. "Só depende de ti", responderam-lhe. Ainda assim, diz, "valeu a pena ter deixado o meu país".
Ao lado do jogador está Francis, outro elemento africano da equipa. Aceitaram falar, mas escondem-se a um canto, num café discreto da cidade, a centenas de metros da sede, para garantir que outros elementos do grupo não conseguem identificá-los. Confrontado com as palavras de Sérgio Daniel, que garante estar a pagar o prometido aos jogadores, Francis baixa a cabeça e deixa escapar uma expressão de desilusão. "Isso significa que ele sabe que o que está a fazer é errado. It's all a lie, é tudo uma mentira", lamenta.
Reportagem retirada daqui